top of page

O Erro Consciente – Niilismo do Progresso

Atualizado: 30 de out.

Brisas da madrugada.

O Erro Consciente – Niilismo do Progresso


Esse texto surgiu às três da manhã de um dia qualquer, depois de uma pergunta aleatória que apareceu na minha cabeça: se todo bebê precisa de cuidado pra sobreviver, como é que nasceram os primeiros humanos? Quem cuidou deles?


Às vezes eu penso que talvez o ser humano não seja exatamente uma evolução, mas um acidente que começou a pensar demais.

Porque, no fundo, todos os outros animais só vivem.

Eles comem, dormem, sentem medo e prazer, e pronto.

A gente, não.

A gente faz as mesmas coisas, mas antes precisa inventar um motivo.

A consciência virou um tipo de vírus que não desliga mais.


Claro que eu gosto do conforto. Gosto de dormir numa cama quente, de tomar banho quente, de ter comida fácil e uma pia que sai água limpa.

Não sou maluca de achar que seria melhor voltar pra caverna.

Mas às vezes me dá essa sensação de que tudo isso pode ser uma armadilha elegante.

Se a gente nunca tivesse conhecido essas coisas, não sentiria falta.

Mas agora que conhece, sofre sem elas.

É como se a vida moderna tivesse trocado a caça de comida pela caça de dopamina.

A gente caça status, caça distração, caça curtida.

E chama isso de viver.


Tudo que a gente inventa pra fugir da dor acaba criando uma nova.

O dinheiro ajuda, mas também adoece.

O prazer é bom, mas quando vira meta, destrói.

A tecnologia aproxima, mas também isola.

O progresso cura doenças, mas cria ansiedade.

A gente construiu uma civilização pra aliviar o sofrimento, e o sofrimento só mudou de roupa.


Os neandertais viviam em grupo, faziam fogo, caçavam e enfrentavam o frio.

Não era um paraíso. Era uma vida difícil, cheia de riscos e incertezas, mas sem esse tipo de tortura mental que a gente criou.

Eles sofriam com o corpo, não com a mente.

O medo deles terminava quando o perigo passava.

O nosso não termina nunca, porque a cabeça continua fabricando ameaças mesmo quando tudo parece em paz.

Talvez a diferença não seja entre quem sofria e quem não sofria, mas entre quem sabia que sofria e quem simplesmente vivia.


A gente ficou mais esperto, mas não mais sábio.

Ganhou tecnologia, mas perdeu instinto.

Inventou culpa, vergonha, medo do corpo, medo do desejo.

Criou Deus e depois o matou, e ficou vazio no meio do caminho.

Hoje tenta preencher o buraco com tudo: consumo, prazer, velocidade, qualquer coisa que distraia.


Mesmo assim, é dessa dor que nasce a arte.

Se o ser humano não sofresse, não escreveria, não pintaria, não faria música.

A dor é o preço da consciência, e a arte é o jeito que a consciência encontra pra respirar.

A gente cria beleza pra suportar o fato de estar acordado demais.


O ser humano é o único bicho que percebe o próprio erro e continua cometendo.

Destrói o planeta e chora por isso.

Sente culpa, mas repete.

E talvez seja justamente aí que mora a nossa última chance de redenção: reconhecer o erro e continuar, mesmo assim.


Talvez a verdadeira evolução não seja voltar pra caverna nem ir pra Marte, mas aprender a pensar sem se afastar do sentir.

Talvez evoluir seja lembrar que a gente veio da terra, e não da máquina.


E talvez o mais honesto disso tudo seja admitir que não dá pra voltar.

Não tem botão de desligar a consciência.

O vírus já se espalhou.

Aquele neandertal em paz ficou pra trás, e o que restou foi o fantasma inquieto que a gente é hoje.


A ideia de uma evolução “melhor” talvez seja só uma miragem bonita, uma tentativa de consolar o que já não tem cura.

E aí eu fico pensando: se não dá pra curar, por que a gente continua falando sobre isso?

Talvez porque falar seja a única coisa que o erro consciente sabe fazer.

A gente fala pra provar que ainda está aqui.

A gente escreve pra dar forma à dor, pra que o abismo pelo menos tenha um eco.

Não é um mapa de fuga, é um registro de quem sobreviveu à própria lucidez.


No fim, o que sobra é o absurdo.

Acordar no dia seguinte, sentir culpa, fazer café.

Saber que tá caçando dopamina e continuar rolando a tela.

Se emocionar com uma música e se preocupar com um boleto.


Talvez a única dignidade que ainda reste seja essa: sustentar a contradição.

Ser o erro consciente e, em vez de tentar consertar, só observar, com ironia, com cansaço, mas também com um pouco de ternura.

Talvez a paz que a gente tanto busca não seja mais a paz do neandertal, mas essa paz exausta de quem entende a piada cósmica e, mesmo assim, decide continuar vivendo.


E sobre a pergunta inicial… eu já até esqueci qual era mesmo.

Acho que tinha a ver com bebês, ou com quem cuidou dos primeiros humanos, sei lá.

Mas no fim, talvez nem importe tanto.

O que começou como uma dúvida boba virou essa confusão toda aqui, o tipo de coisa que só acontece às três da manhã.


— Mari Kuste

bottom of page