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Quando Aquilo que Amamos Vira Modinha

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Sabe quando você descobre uma coisa que mexe com você de verdade? Uma música, um livro, uma ideia, até uma experiência estética. Aquilo toca fundo, parece um pedaço da sua identidade. E você até compartilha, mas não com todo mundo. Mostra pra quem você sente que vai entender, que vai olhar com profundidade. É quase um cuidado: “essa pessoa vai ouvir de verdade”, “essa pessoa vai ler de verdade”. Não é esconder, é confiar.


Só que, de repente, aquilo explode. Vira modinha. Aparece em todo lugar, em contextos rasos, usado por gente que muitas vezes nem sabe o que aquilo significa. E aí vem a irritação. Porque não é mais uma experiência escolhida, virou repetição automática.


E aí eu fico pensando: por que isso incomoda tanto? Será que é porque perde o sentido, banaliza mesmo? Ou será que tem a ver com exclusividade, com a sensação de que antes aquilo era um reflexo só meu? Não é que você deixa de gostar. O objeto continua lá, a música continua boa, o livro continua incrível. Mas o campo muda. E esse campo faz diferença. Mostrar uma música pra um amigo que você sabe que vai ouvir com atenção é uma coisa. Ver essa mesma música em propaganda é outra. O som é o mesmo, mas a experiência não.


E isso não vale só pra arte. Nas relações íntimas é igual. Você vive um momento que parece único, quase sagrado. A sensação de que aquilo só existe entre vocês dois. E quando descobre que a pessoa repete do mesmo jeito com qualquer um, algo se perde. Não é que o momento vivido deixe de ter sido real, mas já não é mais exclusivo, já não é mais aquele espaço só de vocês. A mesma cena que antes era visceral agora parece genérica. É parecido com quando algo que você amava vira modinha: não muda a coisa em si, mas muda a forma como você olha pra ela depois.


E aí surge outra questão: será que isso tem a ver com o jeito de ser de cada pessoa? Talvez gente mais intensa, mais profunda, sinta esse incômodo de forma mais forte. Porque pra quem é desapegado, nada disso pesa tanto. Mas será que é egoísmo da nossa parte sentir assim? Ou é justamente a prova de que a gente valoriza o que é profundo?


Hoje em dia existe esse discurso de que tudo tem que ser desapego, tudo tem que ser de todo mundo, tudo compartilhado, nada é só seu. Mas será que quando tudo vira de todos, as coisas não perdem valor? Será que o excesso de desapego também não banaliza? Se nada pode ser íntimo, se nada pode ser guardado num círculo menor de sentido, será que sobra alguma profundidade?


Talvez o ponto seja esse: não é só sobre gostar de exclusividade. É sobre entender que certos vínculos, certas experiências, ganham força justamente porque não são vividos por todo mundo. Quando isso se dilui, algo se perde. Não no objeto em si, mas no reflexo que ele causava em você.


E aí entra a questão da personalidade. Será que só pessoas mais intensas e profundas sentem isso com tanta força? Porque tem gente que parece não ligar, que consegue consumir sem se importar se aquilo virou febre ou não. Talvez porque seja mais desapegada mesmo. Mas será que esse desapego é sempre uma virtude? Porque hoje em dia parece que tudo precisa ser desapego, tudo precisa ser de todo mundo, nada pode ser íntimo. E eu fico pensando: será que quando tudo é de todo mundo, nada tem realmente valor? Será que a intimidade não perde força justamente quando deixa de ser escolhida, quando deixa de ter contexto?


Pega, por exemplo, aquelas frases que nascem de uma experiência real, de uma reflexão profunda, e em pouco tempo viram chavão de Instagram. A frase continua lá, mas você olha e já não sente mais nada, porque foi repetida até virar um decalque sem peso. É quase triste: a banalização mata o impacto.


Ou até na espiritualidade. Quantas vezes você vê conceitos que nasceram de vivências profundas, doloridas até, sendo transformados em palavras de moda? “Gratidão”, “manifestar”, “energia positiva”. O problema não é a palavra em si, é ver como ela perde densidade quando vira muleta de qualquer situação. E aí, quem viveu a experiência de verdade, olha e pensa: “isso não tem mais nada a ver com o que eu senti.”


E dá pra puxar também pra moda, literalmente. Quando você encontra uma peça que parece única, que representa um estilo que você se identifica, e dali a pouco tá em todo shopping, em qualquer fast fashion. O corte é o mesmo, a roupa é a mesma, mas a sensação de singularidade some. E parece que não é mais você vestindo aquilo, é um uniforme coletivo.


No fundo, tudo isso vai bater na mesma questão: até que ponto o valor das coisas tá no objeto em si, e até que ponto tá no contexto, na exclusividade, no pacto silencioso de cuidado que a gente cria em volta delas? E aí vem outra dúvida: será que sentir esse incômodo é egoísmo? Ou será que é simplesmente não querer que tudo seja engolido pela lógica da massa, onde nada pode ser íntimo, nada pode ser preservado?


E isso não acontece só com arte, com moda ou com relações íntimas. Dá pra ver na política também. Quantas ideias sérias, lutas que nasceram de sofrimento real, de contextos pesados, acabam virando moda? Um movimento começa com gente na rua, com risco, com dor, com consequência. Daqui a pouco, ele tá resumido em hashtag, em camiseta, em bordão. O peso da experiência real se dilui na superfície da tendência. A causa continua existindo, mas a forma como ela circula muda. E às vezes quem viveu aquilo desde o começo olha e sente que esvaziou, que perdeu densidade.


O mesmo vale pra debates sérios. Um conceito nasce dentro da filosofia, da sociologia, carregado de estudo, reflexão. Em pouco tempo, vira palavra da moda. Todo mundo repete sem nem entender. “Lugar de fala”, “desconstrução”, “patriarcado”. Não é que essas palavras não tenham sentido. Mas quando entram nesse giro massivo, acabam virando quase senha vazia. Quem sabe o peso original sente essa banalização como uma traição simbólica.


E aí volta a pergunta: será que isso é coisa de gente intensa demais, que não consegue desapegar? Ou será que é uma crítica legítima a como a sociedade engole tudo e transforma em produto? Porque hoje o que nasce profundo corre risco de ser transformado em mercadoria, em tendência, em modinha. E quando vira modinha, perde justamente o que tinha de singular.


No fim, a sensação é sempre a mesma: não é que a coisa em si deixe de ter valor. Mas quando ela se espalha sem cuidado, sem profundidade, a forma como ela ecoa na gente muda. O reflexo que ela causava em você deixa de ser só seu.


No fim, acho que tudo gira em torno disso: o objeto, a obra, a experiência continuam existindo. A música ainda toca, o livro ainda tem o mesmo texto, a causa política continua sendo importante. Mas a forma como aquilo circula no mundo muda o reflexo que causa em nós. O que antes parecia íntimo, escolhido, agora é repetido por todo lado, às vezes sem nenhum cuidado. E esse deslocamento mexe.


A gente pode até se perguntar se isso é egoísmo, se é coisa de gente intensa demais, que valoriza o que deveria ser “de todo mundo”. Mas talvez não seja só isso. Talvez seja simplesmente reconhecer que nem tudo precisa ser banalizado, que existe valor no íntimo, no cuidado, no que não está em toda vitrine. O desapego total pode até soar bonito, mas se tudo for de todos o tempo todo, o que sobra de singular?


Talvez o incômodo seja justamente esse: perceber que parte do que dava sentido não estava apenas no objeto, mas na forma como a gente vivia, no pacto silencioso de cuidado, de exclusividade, de profundidade. Quando isso se quebra, o valor não some, mas muda. E talvez a reflexão seja essa: o quanto do que a gente chama de “autenticidade” está no mundo, e o quanto está no nosso jeito de olhar pra ele.


Por Mari kuste (Aeluriah)

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