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Quando Aquilo que Amamos Vira Modinha

Atualizado: 30 de out.

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Quando o singular vira modinha



Sabe quando você descobre algo que te toca de verdade? Pode ser uma música, um livro, uma ideia, até uma experiência estética. Aquilo mexe fundo, parece um pedaço da sua identidade. E você até compartilha, mas não com todo mundo. Mostra pra quem sente que vai entender, pra quem vai olhar com profundidade. É quase um cuidado: “essa pessoa vai ouvir de verdade”, “essa pessoa vai ler de verdade”. Não é esconder, é confiar.


Só que, de repente, aquilo explode. Vira modinha. Aparece em todo lugar, em contextos rasos, usado por gente que muitas vezes nem sabe o que aquilo significa. E aí vem a irritação. Porque não é mais uma experiência escolhida, virou repetição automática.


E aí eu fico pensando: por que isso incomoda tanto? Será que é porque perde o sentido, banaliza mesmo? Ou será que tem a ver com exclusividade, com a sensação de que antes aquilo era um reflexo só meu? Não é que a gente deixa de gostar. A coisa continua boa, o som continua bonito, o livro continua incrível. Mas o campo muda. E esse campo faz diferença. Mostrar uma música pra alguém que vai ouvir com atenção é uma coisa. Ver essa mesma música numa propaganda é outra. O som é o mesmo, mas a experiência não.


E isso não vale só pra arte. Nas relações íntimas é igual. Às vezes você vive um momento que parece único, quase sagrado. A sensação de que aquilo só existe entre vocês dois. E quando descobre que a pessoa repete o mesmo gesto com qualquer um, algo se perde. Não é que o momento deixe de ter sido real, mas já não é mais exclusivo. A mesma cena que antes era visceral agora parece genérica. É parecido com quando algo que você amava vira modinha: não muda a coisa em si, mas muda o reflexo dela dentro de você.


Acho que isso também tem a ver com o tipo de pessoa que a gente é. Talvez gente mais intensa, mais profunda, sinta esse incômodo com mais força. Pra quem é mais leve, desapegado, nada disso pesa tanto. Mas será que é egoísmo sentir assim? Ou é só prova de que a gente valoriza o que é vivido com verdade?


Hoje existe essa ideia de que tudo tem que ser compartilhado, de todo mundo, sem apego, sem dono. Mas quando tudo é de todos, as coisas ainda têm valor? O excesso de desapego também banaliza. Se nada pode ser íntimo, se nada pode ser guardado num círculo menor de sentido, o que sobra de profundo?


Talvez o ponto seja esse: não é sobre exclusividade, é sobre cuidado. Certas experiências ganham força justamente porque não são vividas por todo mundo. Quando se diluem, perdem peso. Não no objeto em si, mas no reflexo que ele causava em você.


Pega aquelas frases que nascem de experiências reais e em pouco tempo viram chavão de rede social. A frase continua lá, mas o impacto desaparece, porque foi repetida até virar um decalque sem alma. A banalização mata o impacto.


Ou na espiritualidade. Quantas palavras que nasceram de vivências profundas viram moda? “Gratidão”, “manifestar”, “energia positiva”. O problema não é a palavra, é o esvaziamento. Quem sentiu de verdade olha e pensa: “isso não tem nada a ver com o que eu vivi”.


Até na moda é assim. Você encontra uma peça que parece única, que tem tua cara, e logo ela está em todo shopping, em qualquer vitrine. O corte é o mesmo, mas a sensação muda. Já não parece você vestindo aquilo, parece um uniforme coletivo.


No fundo, o valor das coisas está menos no objeto e mais no contexto. Está na forma como ele se liga a você, no pacto silencioso de significado que vocês criaram. E quando esse pacto se quebra, a coisa perde densidade.


Isso também aparece na política e na cultura. Ideias sérias, que nasceram de sofrimento real, acabam virando tendência. Movimentos de rua, lutas de verdade, viram hashtag e estampa de camiseta. A causa continua existindo, mas o peso da vivência real se dilui na superfície da moda.


Acontece o mesmo com conceitos importantes. Palavras que surgiram de reflexão profunda, como “desconstrução”, “lugar de fala”, “patriarcado”, são repetidas até perder sentido. Quem entende a origem sente a banalização como uma traição simbólica.


Então volta a pergunta: será que isso é coisa de gente intensa demais, que não sabe desapegar? Ou é uma crítica legítima a um mundo que transforma tudo em produto? Porque hoje o que nasce profundo corre o risco de ser transformado em mercadoria. E quando vira mercadoria, perde justamente o que tinha de singular.


Acho que o incômodo vem daí. Não é sobre posse, é sobre profundidade. É perceber que o valor não estava só na coisa em si, mas no jeito como ela te atravessava. Quando o mundo inteiro passa a repetir sem entender, a ligação muda.


Talvez o desapego total seja bonito no discurso, mas na prática ele pode esvaziar tudo. Nem tudo precisa ser de todos o tempo todo. Existe valor no íntimo, no que é cuidado, no que é escolhido.


No fim, talvez o que doa não seja ver algo que você amava virar moda, mas ver a leveza com que as pessoas tratam o que pra você era quase sagrado.


— Mari Kuste

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